quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

UM PLANO MARSHALL PARA CUBA

UM PLANO MARSHALL PARA CUBA

Artigo do sociólogo argentino Atilio Boron, publicado no sítio Rebelión:

Cuba enfrenta nestes dias um dilema de ferro: ou atualiza, revisa e reconstrói seu modelo econômico ou a revolução corre o sério risco de sucumbir diante da pressão combinada dos seus próprios erros e das agressões do bloqueio estadunidense. Os países da América Latina e Caribe, assim como a quase totalidade dos da África e Ásia, não podem permanecer indiferentes diante desta situação, ou limitar-se a contemplar como a revolução trava, sem outra ajuda além de suas próprias forças, esta decisiva batalha.

Mas o apoio não pode ser meramente declaratório. Isto é bom, mas é insuficiente. Cuba necessita de algo mais: concretamente, que seus credores, especialmente os de países da América Latina e Caribe, anulem sua dívida externa. Argentina é o maior credor – por um empréstimo concedido pelo governo de Hector Câmpora e seu ministro da Economia José B. Gelbard, em 1973 – e que o ex-ministro de Relações Exteriores do presidente Néstor Kirchner, Rafael Bielsa, propôs a quitação de 50% de seu montante, que somando o principal e os juros acumulados daria, na atualidade, aproximadamente 1,8 bilhão de dólares. Em dezembro de 2001, o seu colega de gabinete, o ministro da Economia Roberto Lavagna, propôs aos credores da Argentina quitar 75% sobre o valor nominal da dívida.

Como é sabido, este país finalmente atingiu a meta que, segundo os cálculos, flutua em torno de 70% do valor nominal dos bônus de sua dívida. A Casa Rosada deveria, ao menos, garantir a Cuba o mesmo tratamento que obteve de seus próprios credores. Isto seria o mínimo. O correto, o que seria eticamente impecável, seria cancelar esta dívida e, desse modo, aliviar a carga que pesa sobre a república-irmã de Cuba. Os 1.147 habitantes da Argentina que, graças a “Operação Milagro”, no último ano recuperaram gratuitamente a visão no Centro Oftalmológico Dr. Ernesto Guevara, de Córdoba, e os mais de 20 mil alfabetizados que aprenderam a ler e escrever com o programa cubano “Yo Si Puedo”, seriam a razão, entre outras, para cancelar esta dívida. Tal coisa seria um ato de estrita justiça. E o mesmo deveriam fazer os governos do México, que mantêm créditos da ordem de 500 milhões de dólares; Panamá, 200 milhões; Brasil, 40 milhões; Trinidad-Tobago, 30 milhões; e Uruguai, também com 30 milhões.

Por que de estrita justiça? Por várias razões. Expomos simplesmente duas. Em primeiro lugar, como equitativa retribuição pelo generoso e inigualável internacionalismo cubano, que levou essa revolução a transcender as suas fronteiras, semeando de médicos, enfermeiros, dentistas, educadores e instrutores esportivos ao mundo todo, enquanto o império e seus aliados o saturavam com militares, “comandos especiais”, espiões, agentes da inteligência, policiais e terroristas.

Ao longo das últimas décadas, Cuba enviou ao exterior uns 135 mil profissionais da saúde a mais de 100 países de todo o mundo, especialmente à América Latina e Caribe e África, mas também aos da Ásia. Os médicos cubanos estavam no Haiti muito antes do fatídico terremoto, enquanto os EUA aumentaram sua presença enviando... marines. A ajuda cubana para combater enfermidades e prevenir as mortes em tantos países foi e é concreta e efetiva. Agora, os povos e nações do Terceiro Mundo devem correr e ajudar esse farol da libertação nacional e social que há mais de meio século inspira e ilumina nobres lutas de nossos povos. E devem fazê-lo com uma solidariedade militante, traduzida em ajuda econômica efetiva. As declarações serão bem-vindas, mas são insuficientes.

Em segundo lugar, há uma obrigação moral de ajudar Cuba porque, pensemos: o que seria de nossos países se a sua revolução não tivesse resistido com pé firme sem arriar sua bandeira às pressões do imperialismo e à direita mundial, após a implosão da União Soviética? O que seria com uma Cuba de joelhos, vencida e desarmada diante da restauração do saque neocolonial que havia sido submetida desde 1898, com seus sonhos e utopias humanistas golpeados pelo retorno triunfal das máfias capitalistas como as que, até então, estavam arrasando a defunta União Soviética? O que seria com a revolução e a criação de uma sociedade solidária excomungadas como irresponsáveis a sonhar com falsos messias que inexoravelmente culminam em um infernal pesadelo.

Seria possível a transcendental mudança político-ideológica materializada na ascensão e consolidação do poder de Hugo Chávez, Evo Morales e Rafael Correa, para mencionar apenas os casos mais significativos? Mais, sem o estímulo emanado da heróica resistência de Cuba, de seu “mau exemplo” evidenciado em taxas de mortalidade infantil menores que as dos Estados Unidos apesar do bloqueio e das agressões, seria possível o surgimento da moderada centro-esquerda em países como Argentina, Brasil e Uruguai no começo do novo século? De maneira nenhuma! Se estes avanços foram possíveis foi, além das causas próprias de cada caso, porque Cuba resistiu. Se houvesse capitulado e fosse convertida a colônia estadunidense, o tsunami direitista teria arrasado esta parte do mundo. Graças a Cuba, nossos povos evitaram tamanha catástrofe.

Por isto, além de anular as dívidas existentes com os países da região, tanto os credores como aqueles que não são, deveriam criar, de imediato, um fundo especial de solidariedade com a revolução cubana. Os Estados Unidos fizeram o mesmo para salvar os europeus da debacle após a II Guerra Mundial, e seu êxito foi extraordinário. O Plano Marshall satisfez plenamente as expectativas que havia despertado e as economias européias rapidamente se recuperaram. Cuba, castigada com os planos Marshall contra – tal como é agora o custo do bloqueio estadunidense sobre a frágil economia cubana – merece muito um gesto similar de seus irmãos latino-americanos.

Estes contam com enormes reservas em seus bancos centrais. Em 2007, o presidente equatoriano Rafael Correa calculou que as reservas existentes na região estavam em torno de 200 bilhões de dólares, e esta cifra não deixou de crescer nos anos posteriores. Uma estatística realizada pelo FMI indica que no final de 2009 as reservas internacionais da Argentina ascendiam a 49,6 bilhões de dólares, 238,5 bilhões no Brasil, 90,8 no México, 26 no Chile, 25 na Colômbia, 32,8 no Peru e 35,8 na Venezuela. Sem dúvida alguma, com os aumentos registrados em 2010, as reservas cambiais destes países – além de outros como Bolívia, Equador e Uruguai que não foram contemplados na estatística – superariam folgadamente os 500 bilhões de dólares.

Daí a enorme importância de colocar em marcha, o quanto antes, o Banco do Sul, travado, todavia, por pretextos burocráticos e por miopía política de alguns governantes. Atingindo apenas 2% de tão fabulosas reservas, poderia criar, sem maior esforço, um fundo especial de 10 bilhões de dólares destinado a financiar o complexo processo de reformas econômicas socialistas que Cuba deve realizar urgentemente nos próximos meses.

Seria um gesto de merecida reciprocidade diante da comprovada solidariedade cubana com nossos países ao longo de cinco décadas; e também um ato de altruísmo calculado para o qual só falta vontade política, porque o dinheiro aí está. Ou será que algum governante da região pode ser tão ingênuo para não dar-se conta que se a Revolução Cubana fosse derrotada, o império daria uma guinada com toda sua força sobre nossos países, sem distinção da coloração ideológica, para recolonizar a sangue e fogo o continente e restaurar a ordem que Fidel e o Movimento 26 de Julho desafiaram em 1º de janeiro de 1959?

* Tradução de Sandra Luiz Alves.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

O discurso do "combate às drogas" e suas ideologias


O discurso do "combate às drogas" e suas ideologias

Richard Bucher*, Sandra R.M. Oliveira**



O discurso do "combate às drogas" e suas ideologias
The discourse of the "fight against drugs" and its ideologies


Richard Bucher*, Sandra R.M. Oliveira**
BUCHER, R. & OLIVEIRA, S.R.M. O discurso do "combate às drogas '' e suas ideologias. Rev. Saúde
Pública, 28: 137-45, 1994. À luz de considerações científicas sobre o abuso de drogas, discute-se
a ideologia dos textos sobre drogas que seguem uma orientação moralista e repressora, a despeito
das condições sócio-históricas do consumo. Colocam-se em foco os sentidos não-literais para situar
tais discursos no contexto da sua produção e para detectar neles formas de manutenção de poder
presentes nas relações sociais. Utiliza-se a teoria da análise do discurso como a metodologia
apropriada para se desvendar os indicadores da ideologia que impõe aos textos sobre drogas uma
determinada modalidade. Os resultados revelam um discurso com propósitos claramente
persuasivos, direcionando e manipulando modos de ser e de ver na sociedade, deixando-se
interpretar como parte interessada em um pesado sistema de conformismo social. Conclui-se que
a questão das drogas não é tratada em si, mas enquanto mito construído, usado para combater
série de desvios da ordem social vigente.
Descritores: Abuso de substâncias, prevenção. Linguagem. Autoritarismo.
Considerações sobre o discurso do
"combate às drogas"
Entre as diversas abordagens da "questão
das drogas", nas sociedades modernas, destacase
aquela que enfatiza o "combate às drogas",
apresentando-o como a única maneira capaz de
enfrentar e erradicar o "grave flagelo". De expressão
rigorosamente condenatória, caracteriza-
se pela veemência de uma argumentação
mais emotiva e alarmista do que serena e objetiva,
mais sensacionalista do que científica, mais
moralista do que isenta de juízos valorativos.
Desta forma, incita a uma "cruzada anti-drogas",
cuja beligerância encobre série de fatores que,
de certo, contribuem decisivamente para a expansão
do fenômeno.
Portanto, ao invés de analisar o consumo de
drogas em seus múltiplos determinantes para
chegar a propostas preventivas pertinentes e
prometedoras de eficácia, tal abordagem limitase
a preconizar uma repressão implacável, restringindo-
se, desta forma, às drogas ilícitas. Ora,
* Departamento de Psicologia Clínica da Universidade
de Brasília - Brasília, DF - Brasil
** Bolsista junto ao Departamento de Psicologia Clínica
da Universidade de Brasília - Brasília, DF - Brasil
Separata/Reprints: R. Bucher - PCL-UnB - 70910-900 - Brasília,
DF - Brasil
em muitos países, entre os quais o Brasil, são
precisamente as substâncias lícitas as mais consumidas
e as mais fortes geradoras de abusos e
dependências. Trata-se aí de um fato epidemiológico
inconteste, a ser levado a sério diante da
distorção do fenômeno introduzida pela pregação
tantas vezes piegas do "combate às drogas".
Opor-se a esta visão reducionista não significa,
no entanto, entregar-se à apologia do consumo
de substâncias psicoativas, mas tão somente
defender uma análise objetiva e contextualizada
da situação das drogas em uma determinada
sociedade. Não se trata, pois, da defesa
de uma posição extremista de "liberação de
todas as drogas" para um consumo indiscriminado,
mas do respeito por uma experiência humana
milenar, a ser examinada numa linha histórico-
antropológica para que se torne possível
apreender suas significações modernas.
Constata-se, de fato, que a cegueira da posição
repressiva radical traz mais estragos do
que benefícios, por fazer prevalecer uma visão
unidimensional, inapropriada para o trato do
fenômeno em toda sua complexidade. As numerosas
implicações ideológicas daquela visão não
encontram o necessário contra-peso através de
análises sociais profundas, pertinentes e abrangentes
(Carlini - Cotrim & Pinski3, 1989).
Abordar a "questão das drogas" no enfoque
combativo citado significa, ainda, não tratá-la
como realidade a ser investigada, mas sim, transformá-
la em mito fabricado para cumprir determinadas
funções sociais. Espalhada no bojo da
"cruzada anti-drogas", lhe é imputada nitidamente
a função de "bode expiatório", fazendo-a
aparecer como responsável por grande parte
dos revezes sociais; produz-se então uma mistificação,
erigindo-se uma cortina de fumaça ao
redor do pretendido "flagelo", o que impede seu
dimensionamento correto e averigüável, imprescindível
para se ultrapassar o nível de preconceitos,
prejulgamentos e visões preconcebidas,
ou ainda, aquele de interpretações unidirecionais
ou tendenciosas (Bucher2 , 1992).
Qualquer discurso que enfoca questões sociais
pode, conforme os seus efeitos de sentido,
transformar ou manipular as representações coletivas
com a finalidade de manter certas estruturas
de poder; da mesma forma, pode modificá-
las, visando à superação dessas mesmas estruturas.
Assim, adquirem identidade particular,
aparecendo como formações que se definem
pelos sentidos ideológicos que reiteram e
que vão direcionar a sua função enunciativa.
Desencadeadas a partir da interação de opiniões
diferentes sobre questões de interesse comum,
tais formações apresentam regularidades em
seu funcionamento que permitem interpretá-las
como parte de uma matriz ideológica específica,
constituindo o que se denomina, em Análise
do Discurso, de formação discursiva.
Aplicando esta concepção à discussão sobre
drogas, pode-se formular a hipótese segundo
a qual determinados textos, ainda que produzidos
em setores diferentes, constituem uma
mesma formação discursiva, promovendo a circulação
de uma série de sentidos específicos.
Estes, no seu conjunto, incorporam toda uma
ideologia anti-drogas, plataforma para se divulgarem
e implantarem medidas de controle daqueles
fenômenos de consumo considerados,
no referido prisma ideológico, como socialmente
indesejáveis e portanto, exigindo repressão
(Oliveira10 , 1992).
A partir dessas considerações, propõe-se
um recorte no extenso campo de produção
sobre drogas, submetendo à análise a formação
discursiva do "combate", buscando compreender
os seus processos de significação e
a forma como influem na construção do senso
comum do brasileiro a respeito da temática
em pauta, incluindo aí as repercussões no campo
da saúde pública.
A aproximação dá-se através do conceito
de ideologia, enfatizada enquanto categoria explicativa
do funcionamento dos discursos sociais.
Em face deste termo controverso e plurívoco,
lançou-se mão do discernimento de polaridades
positiva e negativa para incluir seus
inúmeros significados em dois registros: o descritivo
e o crítico. O primeiro enfoque refere-se
a sistemas de pensamentos, crenças, valores ou
"cosmovisão"; por sua vez, o sentido crítico
aponta as idéias e atitudes postas ao serviço da
sustentação das relações assimétricas de poder,
da injustiça social e da distribuição desigual de
direitos e rendas.
Exploram-se, assim, as relações entre ideologia
e linguagem, ultrapassando a noção de
linguagem como sistema de comunicação para
correlacioná-la com os fenômenos conflitantes
da estruturação social da qual ela própria faz
parte. Dessa maneira concebida, a linguagem
passa a ser definida como discurso, ou seja,
como ato social ou ação que visa a produzir
efeitos (Fiorin5, 1990).
Se e verdade que nenhum discurso escapa
do envolvimento com a dimensão ideológica,
discernir os dois enfoques citados propicia uma
avaliação contingente dos efeitos de sentido
dominantes, permitindo compreender o alcance
de determinado fenômeno social, no caso, o
consumo de drogas. Assim, uma contextualização
desse consumo como fenômeno histórico
e antropologicamente situado permite apreender
descritivamente seus sistemas de valores,
crenças e representações populares, enquanto
que uma análise crítica das produções sobre
drogas, proferidas por certas instâncias de poder
ou de autoridade, permite detectar tendências,
esforços e manipulações para proteger
determinadas relações econômicas e políticas
vigentes.
É com este intuito de avaliação crítica que
textos representativos do discurso repressivo
sobre drogas foram analisados no presente trabalho.
Ao visar as coerções institucionais que
marcam tal produção discursiva, levantaram-se
questões vinculadas ao poder institucional, às
práticas repressivas, punitivas e assistenciais
em saúde mental, aos jogos de interesses políticos
e econômicos no comércio de drogas lícitas
(além das ilícitas), ao papel do profissional nas
áreas de saúde, educação, ação social, justiça e
pesquisa científica.
Dentre as numerosas contradições possíveis
de se apontar na formação discursiva da
"cruzada anti-droga" destacaram-se certos
pressupostos inerentes à sua vinculação com
as estruturas sociais e de poder que as engendram
e que asseguram sua divulgação - pressupostos
esses detentoras de configurações
ideológicas, cujos contornos mais precisos
tentou-se apreender.
Método: Ideologia e análise do discurso
Na investigação proposta, optou-se pela
Análise do Discurso como instrumento adequado
para examinar a ligação entre a linguagem
apresentada e a ideologia subjacente. Sua metodologia
permite explicitar os processos comunicativos
construídos nos textos sobre drogas e
detectar intenções secretas ou interesses escusos
em veicular idéias condenatórias radicais,
por razões que ultrapassam os efeitos nefastos
do consumo de drogas em si.
A Teoria do Discurso apóia-se no conceito
de linguagem como sendo a materialidade
apropriada à ideologia. Sistematizada inicialmente
por Pecheux12 , (1969), a Análise do
Discurso, somada à contribuição de autores
como Bakhtin1 (1970), Foucault7,8
(1969,1971), Ducrot4, (1972) e Fairclough6,
(1989), vem sendo amplamente utilizada para
trabalhar os sentidos não literais dos enunciados,
com base no reconhecimento da dimensão
sócio-histórica da linguagem.
Na sua origem, a Teoria da Análise do
Discurso, tal como idealizada por Pecheux12,
aparece ligada à dimensão político-ideológica:
suas premissas básicas apoiam-se na concepção
da linguagem ter um modo de constituição
profundamente histórico, não sendo possível
dissociá-lo do conjunto das práticas humanas.
Por esta razão, saber quem fala, para
quem fala, em que situação, de que lugar da
sociedade, com que intento, são elementos de
suma importância no processo comunicativo.
Na constituição dos significados manifestam-
se as coerções ideológicas que incidem sobre
a linguagem. Nas chamadas ordens do discurso
(Foucault8 , 1971) expressam-se determinadas
condições sócio-históricas que impregnam
as formações discursivas, enquanto conjunto
de regras limitadas no tempo e no espaço
e que definem as condições de exercício da
função enunciativa. Os discursos que reiteram
processos socialmente cristalizados podem ser
apreendidos como partes de uma mesma matriz,
determinando regularidades definidas pela
relação que mantém com a ideologia.
Tais idéias chaves servem para a compreensão
da ideologia e das injunções de poder no
discurso repressivo sobre drogas. Repertoriando
esse discurso no espaço específico onde se
articulam linguagem e ideologia, é possível ressaltar
os processos de significação que regem o
imaginário social sobre drogas no Brasil. Para
tanto, série de características lingüísticas relativas
ao vocabulário e à gramática são consideradas
marcas para o entendimento analítico de
tais processos. O presente trabalho, no entanto,
não se limita à análise da superfície lingüística,
mas examina também as propriedades discursivas
que se situam além das marcas formais.
Examinando-se a relação do texto com o
discurso e com o contexto, atingem-se três níveis
de análise, conforme três níveis de organização:
a situação social do momento imediato,
a instituição social enquanto matriz do discurso,
o nível mais amplo da sociedade como um
todo e das suas ideologias. O procedimento
completo da análise passa pelas etapas da descrição,
interpretação e explicação (segundo
Fairclough6), abrangendo vocabulário, gramática
e estrutura textual, visando a revelar tanto os
esquemas classificatórios quanto as combinações
das formas lingüísticas.
Na análise contextual do discurso repressivo
sobre drogas aparece como particularmente
relevante para a apreensão dos sentidos implícitos
o exame dos pressupostos e dos subentendidos.
Estes se deixam considerar como estratégias
lingüísticas e retóricas para neutralizar possíveis
conseqüências de uma compreensão literal
dos atos da fala. Assim, querendo dizer mais
do que se diz ou apagando sentidos pelo silenciamento
de aspectos cruciais do consumo de
drogas, é possível produzir representações convenientes
a uma determinada formação social. O
não-dito, por exemplo, sob a vertente do implícito
(diz "x" querendo dizer "y") e aquela do
anti-implícito (diz "x" querendo silenciar "y"),
pode determinar certas significações ocultadas
no discurso "oficial" (Orlandi4, 1990).
A fim de clarear a trama discursiva que
sustenta a idéia do "combate às drogas" e apontar
os elementos usados para dirigir a opinião
pública rumo ao entendimento "certo" da questão,
são colocadas na base da investigação perguntas
como: que elementos são articulados
para se chegar a uma representação ideologicamente
orientada da droga? que dados são silenciados,
quais outros superdimensionados? que
relações de poder estão em jogo...?
Material: Os textos analisados
Foi desenvolvida uma análise prévia de um
conjunto de textos sobre drogas, lançando-se
mão de uma leitura assistemática que acabou
determinando a composição do corpus. Os textos
foram selecionados pelas especificidades e
regularidades discursivas correspondendo às
características da formação impregnada pelo
Leitmotiv do "combate às drogas". Assim, a recorrência
de determinadas particularidades linguísticas,
retóricas e temáticas serviu para diferenciar
e agrupar os textos como partes de um
mesmo processo de divulgação ideológica.
Na presente análise destacaram-se as seguintes
características, induzindo à escolha das unidades
de pesquisa e das categorias de referência:
1. Silenciamento acerca das questões sociais
que concorrem para os fenômenos de uso,
abuso e dependência de drogas.
2. Desconsideração da motivação do usuário,
da sua dimensão subjetiva.
3. Simplificação do fenômeno das drogas,
apontando elementos unidimensionais na etiologia
da dependência.
4. Centralização exclusiva no produto tóxico
(ilícito).
5. Tratamento genérico dos efeitos da
droga, pela lei do tudo ou nada, sem especificação
do produto, do padrão de uso, da personalidade
e história de vida do usuário, do
contexto.
6. Associação dramática freqüente entre
droga e sexo, droga e crime, droga e loucura,
droga e morte.
7. Omissão do fato de que a droga pode
propiciar prazer, sensações agradáveis, facilidades
de comunicação e relaxamento.
8. Omissão ou descaso a respeito do uso e
abuso de medicamentos psicotrópicos e outras
drogas lícitas.
9. Crença na intervenção heróica e desinteressada
que livrará a comunidade e o país, definitivamente,
das drogas.
10. Recomendação de atividades religiosas,
morais, patrióticas e esportivas como estratégias
de prevenção (ou mesmo como "vacinas").
De acordo com a prevalência desses temas,
foram feitos cortes em três instâncias de produções
discursivas: textos americanos divulgados
no Brasil, documentos oficiais brasileiros e textos
da imprensa brasileira. Os textos selecionados
para a análise foram:
Documentos de produção americana:
a) O Presidente Bush adverte estudantes sobre
o consumo de drogas. Brasília, Embaixada
Americana. Tradução do documento editado
pelo USIS - United States Information
Service, 1989;
b) Escola sem drogas. Brasília, Embaixada Americana.
Tradução do documento editado
pelo US Department of Education, 1989;
Documentação oficial brasileira:
c) PREVIDA - Programa de Prevenção, Educação
e Vida: subsídios para o educador. Brasília,
CONEN/DF, 1991;
d) MURAD, J.E.: Como manter sua escola longe
das drogas. Belo Horizonte, ABRAÇO/PREVIDA*,
1989;
Produção jornalística:
e) Império do pó. Jornal do Brasil, 26/02/92,
p. 10;
f) Na carteira ao lado. VEJA, 27/03/91, p. 42-48.
Com base na interpretação e explicação dos
elementos lingüísticos, da estrutura argumentativa
e dos implícitos desses textos, foi possível
apreender os elementos cruciais da ideologia
que formenta a sua produção e os sustenta.
Resultados da análise: O "combate às
drogas" como construção ideológica
Os resultados demonstram que há série de
regularidades discursivas comuns aos textos ana-
* ABRAÇO - Associação Comunitária de Pais e Mestres
para Prevenção ao Abuso de Drogas.
PREVIDA - Programa de Prevenção, Educação e Vida.
lisados (e a muitos outros sobre o assunto, em
particular na imprensa cotidiana) que se ligam
entre si, cooperando na fixação de sentidos
ideologicamente comprometidos. Estes, por
sua vez, propiciam práticas que atendem às
necessidades de controle social e de manutenção
de certos padrões da ordem vigente.
Os textos remetem-nos a uma visão preconceituosa,
repressora e, por vezes, moralista,
obtendo aceitação nos segmentos políticos e
públicos que se destacam seja pelo desconhecimento
do tema, seja pelas tendências conservadoras
ou anti-liberais. O autoritarismo e a monossemia
são marcas que direcionam suas operações
verbais, dirigidas aos leitores com objetivos
claramente persuasivos, visando a exercer
influência decisiva sobre as suas representações
- como, de fato, qualquer discurso de propaganda
ou de publicidade. As produções funcionam
então como cúmplices nas explicações e justificações
dessa visão preconcebida da questão
das drogas.
Pode-se concluir que os textos analisados
fazem parte de um grande conjunto denominado
formação discursiva anti-drogas. Enquanto
entidade global, ela é abstrata e inacessível, mas
se deixa conhecer através dos textos particulares
dando corpo material ao seu funcionamento.
Enumeram-se, em seguida, os principais
efeitos de sentido construídos neste discurso,
detectados pela análise praticada.
1. Segundo sua retórica argumentativa, destaca-
se como primeira função a meta da persuasão.
Termos expressivos e combinações lingüísticas
diversas estão voltados para a construção
de um sentido dominante. Palavras carregadas
de conteúdos ameaçadores como sinistro,
luta, guerra, espúrio, crime, morte e outros, são
usadas com freqüência, ajudando a construir
enunciados de teor passional, o que dificulta
uma avaliação sóbria da problemática.
Outros recursos, como a reiteração e o
argumento de autoridade, capazes de promover
o discurso como consensual, colaboram
para levar o sujeito a aderir à concepção proposta.
Por exemplo, enunciados do tipo: "O
Presidente Bush deu uma lição aos estudantes
norte-americanos sobre responsabilidade e
maturidade"(texto a, p.1), introduzem personagens
importantes como estratégia de valorização
da mensagem. É o chamado argumento
de autoridade, que fortalece o efeito persuasivo
na medida do prestígio que se associar ao
lugar de fala do orador - no caso, o Presidente
dos EUA.
Exercem também função decisiva, pois
criam um "efeito verdade", os números e os
dados estatísticos freqüentemente apresentados
sem citar a fonte. É comum a referência a
números de grande porte, de forma a alarmar
mais do que informar, como ilustra o seguinte
exemplo: "Pesquisas mostram que o uso de
drogas entre as crianças é dez vezes mais
prevalente do que os pais suspeitam" (b, p.2).
Vê-se, pois, mensagens que não têm por
objetivo informar, mas convencer, limitando a
possibilidade de elaboração de uma concepção
própria por parte do leitor. É dessa forma que
se constrói o discurso do consenso, pelo qual
transmitem-se idéias como partilhadas virtualmente
por todos, investindo-as do papel de um
axioma do qual não se pode (ou deve) duvidar.
Assim sendo, os textos induzem uma verdadeira
subordinação intelectual: o leitor mergulha no
movimento de "combate às drogas" sem se dar
conta, uma vez que este é apresentado (se não
apregoado) como único caminho para enfrentar
e "resolver" a questão do consumo.
2. O tom autoritário e alarmista imprimido
aos textos que materializam o discurso em pauta
traz como resultado a idéia de um saber único
e exclusivo. A tendência de se apresentar como
detentor da verdade está então duplamente presente:
pelo caráter formal da produção mas
também pela força dos argumentos veiculados.
O discurso autoritário é o campo da certeza, do
imperativo categórico que manifesta um saber
supremo, levando o interlocutor a aceitá-lo
como verdade. Impede-se, por conseguinte, a
expansão de um pensamento mais crítico, seja
individual, seja social ou comunitário.
Uma das maneiras pelas quais os produtores
de textos conseguem impor os seus argumentos
dá-se com a utilização de verbos como tenho
encontrado, estou convencido, acredito, precisamos,
que exprimem uma atitude de convicção,
marcando a posição autoritária do locutor.
Reforça tal análise a presença de termos
como trincheira, combate, perigoso, danoso,
insinuando guerra e sofrimento. Estas são associadas
às drogas para provocar um clima de
repúdio incondicional, subsidiando enunciados
do tipo: "O consumo de drogas não é um fato
novo na história da humanidade, atualmente observa-
se um incremento crescente do seu consumo,
gerando grandes problemas sociais e de saúde
como a violência, a marginalidade, a prostituição,
a auto-destruição e morte", (c, p. 15).
O enunciado acima usa o recurso linguístico
denominado de paralelismo, que repete
uma certa estrutura para reforçar uma idéia,
acentuando o seu efeito (a violência, a marginalidade,
a prostituição, a auto-destruição e morte).
Faz dessa forma emergir o sentido de que a
droga é hoje o único fator causal de problemas
que, por outras razões, sempre estiveram presentes
na história da humanidade.
3. Uma das técnicas fundamentais na
construção do discurso anti-droga são os silenciamentos,
utilizados seja para omitir deliberadamente
algo, seja para fala superficialmente
de um fato que poderia enfraquecer a
argumentação. Assim, fala-se muito da droga
ilícita omitindo-se falar das drogas lícitas - as
mais consumidas no mundo inteiro e as mais
perniciosas para a saúde pública. Aplica-se
indiscriminadamente o termo droga, induzindo
o leitor a incluir nesta categoria apenas os
produtos ilícitos, pela associação permanente
com palavras como tráfico, posse, busca,
apreensão, aplicação da lei, notificação e outras,
termos que excluem qualquer possibilidade
de vínculo com a substância alcoólica ou
outro produto legalmente aceito.
Assim, no enunciado: "(...) apelou para
que tomassem parte na luta contra os narcóticos"
(a, p. 1), o termo luta, pela sua associação
com narcóticos, faz referência ao narcotráfico;
somado à ausência de informações sobre
contexto, tipo e padrão de uso do produto,
determina a inclusão de todas as drogas em
uma mesma categoria e reduz a uma única
forma de consumo toda a gama de possibilidades
de uso - desde o consumo ocasional ou
recreativo até o dependente.
Em que pesem referências ocasionais ao
consumo de álcool, fumo, psicofármacos e solventes,
o efeito de sentido criado é de que só a
droga ilegal "é problema". Transmitindo-se a
idéia de que existem duas categorias de substâncias,
as perigosas (= ilegais) e outras benignas,
beneficia-se implicitamente a indústria farmacêutica
e o comércio das substâncias lícitas.
4. Uma outra idéia chave diz respeito à
apresentação do cidadão, em particular jovem,
como ser indefeso, necessitando de orientação
e proteção: "O nosso papel é fazer prevenção e
tentar ajudar os alunos que caem nessa" (f, p.46).
Ou ainda: "Precisamos continuar a propiciar
apoio e orientação aos jovens para que façam
escolhas sãs." (b, p.VI). Enfatiza-se dessa forma o
relacionamento vertical (provedor/receptor) ou
ainda paternalista, articulado à perfeição com o
modelo da sociedade disciplinar, cuja racionalidade
estimula o controle institucional, a relação
autoritária, o enquadramento dos indivíduos sem
participação criativa, sem responsabilidade civil e
sem pensamento crítico.
No parágrafo "Se as bocas funcionam nos
morros, administradas por traficantes que aterrorizam
comunidades indefesas, explorando e
pervertendo menores, os consumidores proliferam
em todas as camadas sociais"(e, p. 10), vê-se
da mesma forma a construção de sujeitos sociais
frágeis, otários ou vitimados. Note-se o vocábulo
indefesas, modificando radicalmente o termo
comunidade, transmitindo a idéia de inércia,
passividade, vulnerabilidade. Embora na perspectiva
sociológica o termo comunidade caracterize
um agrupamento com forte coesão afetiva,
com capacidade de organização ativa e transformadora,
prevalece no texto o sentido de
fragilidade e sujeição.
Insistindo sobre a passividade como inevitável
- implicando em negar qualquer possibilidade
de autonomia pessoal - incentiva-se como
efeito adicional toda uma desmobilização social.
É como se, diante da "ameaça das drogas",
o cidadão, "por sua ingenuidade e incapacidade
de defesa", precisasse da intervenção reguladora
das autoridades benevolentes e "competentes".
Desta forma, ilustra-se (e estimula-se) a
longa trajetória da submissão obediente às normas
disciplinares, rumo à construção de "corpos
dóceis" (Foucault9, 1975).
5. Outra característica marcante dos textos
analisados diz respeito àquelas construções sobre
drogas que as apresentam como um mal em
si, independentemente do uso que delas se faz,
das ações subjetivas e dos processos sociais.
Utilizando os recursos lingüísticos de personalização,
nominalização, metáforas, apresentam-
se os fenômenos como desvinculados de
outros fatores que intervêm na dinâmica dos
comportamentos de consumo.
Os enunciados abaixo exemplificam a personificação,
figura de linguagem pela qual os
seres inanimados agem como se fossem pessoas.
Aplicada à droga, empresta-lhe vida e ação, impedindo
que fosse percebida como parte de um
processo social: "As drogas ameaçam a vida de
nossos filhos, causam ruptura em nossas escolas
e desagregam famílias" (b, p.41). Ou: "Não existe
a escola onde a droga nao entra" (f, p.43).
Apaga-se assim a subordinação do consumo
de drogas às dinâmicas social e individual,
necessárias à sua configuração como "problema".
Eventos sociais, historicidade, motivações
e decisões pessoais são negligenciados em benefício
de determinadas lógicas simplistas que,
"inexistentes" por não serem diretamente explicitadas
nos textos, não podem ser contestados
- tão pouco que as formas de controle social
que encetam.
Na sociedade atual, a individualidade incomoda.
Desta forma, ela é submetida a um mecanismo
disciplinar que a vilipendia como "desvio
da norma", para que se possa assegurar a homogeneização
das multiplicidades humanas. Necessitando
de um campo social homogêneo, os
poderes hegemônicos - políticos mas sobretudo
econômicos - não conseguem conviver com as
diferenças, marcando-as enfaticamente para poder
normatizá-las. Mas eis o paradoxo: com a
coerção normalizadora, a diferença se acentua
e faz o sujeito aparecer como desviante (Velho13,
1978).
6. Outro sentido prevalente refere-se a uma
visão do mundo simplista e maniqueista. Seus
autores, referenciados por ideologias repressoras
e moralistas, enveredem então com facilidade
pelo campo do dogmatismo absoluto, considerando
a verdade como propriedade pessoal.
Usam verbos na forma imperativa e termos
como jamais, nunca, que insinuam uma posição
de certeza, de verdade, de supremacia das afirmações
expressas:
"Ensine aos seus filhos desde criança a dizer
não" ... "Mostre-lhes que o uso de drogas é
perigoso"... "Jamais permitam que os filhos menores
façam uso de bebidas alcoólicas"(d, p.8).
Tais enunciados ensinam e ordenam com
tamanha convicção que não resta ao leitor senão
acatar e submeter-se à força da argumentação
construída no texto. Simultaneamente, são
evitados os advérbios modalizadores possivelmente,
provavelmente, ou verbos no futuro do
pretérito, o que revela o postulado de uma visão
transparente da realidade.
Prevalecem então os verbos na forma presente,
atestando significados absolutos, verdades
incontestáveis que não necessitam de interpretação:
"O uso ocasional de drogas é responsável
pelas vítimas na guerra das drogas"(a,
p.1); "as instituições, principalmente a família,
estão sofrendo uma de suas piores crises" (c,
p. 15); "o traficante está na sala de aula sentado
na carteira ao lado do estudante, a quem irá
oferecer maconha ou cocaína" (f, p.43).
Com a separação maniqueista do mundo
em dois blocos compactos e inconciliáveis - o
mundo dos bons e o mundo dos maus, ao
exemplo das fábulas de mocinhos e bandidos -
os autores de tais textos legitimam os próprios
papéis: protetores dos "bons cidadãos", cujos
comportamentos correspondem às expectativas
de "normalidade", e perseguidores dos "viciados
e traficantes" e outros desviantes de
normas, cujos comportamentos são incriminados
de ameaçarem a "ordem social".
Vilipendiando representantes de diferenças
como desviantes, cria-se todo um sistema de
acusação, podendo funcionar como estratégia
valiosa para a manutenção de certos poderes
discriminatórios. São acusações que, uma vez
formalizadas, implicam um elaborado ritual de
exorcização - segundo o exemplo bem conhecido
do bode expiatório - envolvendo todo um
aparato institucional respaldado pela lei, isto é,
pela possibilidade de coerção e punição.
"Viciado", em particular, contém toda uma
acusação moral que assume explicitamente
uma dimensão policial e política. Implicitamente,
carrega uma acusação totalizadora pondo em
dúvida não apenas a cidadania, mas a própria
humanidade do usuário de drogas. Rotulado
como "maconheiro" ou "marginal", passa a ser
visto como alguém que atenta contra a moral e
os bons costumes, mas também contra as próprias
instituições, o que faz dele um ser anti-social.
Vítimas de uma tal estigmatização, os drogaditos
são considerados como "desviantes" e
transformam-se, a partir daí, em excluídos da
convivência social pacífica, em função de princípios
rígidos, impostos, mantidos e manipulados
ideologicamente.
Conclusão: "Combate às drogas" para
quê?
As análises dos mecanismos de poder envolvidos
no discurso de "combate às drogas" indicam
formas de um processo disciplinar referentes a
um contexto autoritário, discriminatório e repressivo.
Seus textos contribuem com o trabalho
político (senão policial) de sujeição do cidadão
a um determinado ideário de harmonia social,
ajudando a encobrir as contradições inerentes
às sociedades modernas e sustentando relações
de força estabelecidas entre certos grupos
sociais. Ele contrasta em particular com a abordagem
do "problema das drogas" que o situa no
âmbito da saúde pública, enquanto ameaça não
à "ordem social", mas à saúde da população no
sentido amplo, visando em particular os danos
causados pelos abusos de álcool e fumo.
O discurso em pauta não se constitui, portanto,
como uma simples idéia, um conhecimento
objetivo e benéfico ou uma ideal idade
discursiva sobre drogas e seus inegáveis malefícios.
Sua ação mais eficaz consiste no papel de
disciplinarização das pessoas, na medida em
que compactua com normas de conduta constitutivas
de um amplo projeto normalizador das
relações sociais. Apontando a possibilidade e a
ameaça de condutas desviantes, funda-se a prescrição
normativa que desencadeia o controle, a
intervenção e a exclusão.
Reproduz-se assim, a cada instante, as condições
de possibilidades de implantação, na
sociedade, de uma estratégia de normalização
fundada numa razão aparentemente concreta e
irrefutável: o indivíduo social reduzido à sua
condição de usuário ou dependente de drogas
- reduzido, em suma, a ser um "viciado" em
função de um não conformismo qualquer.
Dessa forma, as justificativas, explicações,
recomendações e argumentos que o discurso
de "combate às drogas" usa ou inventa para
desestimular o consumo, devem ser entendidos
menos em razão do próprio fenômeno e mais
em função das estruturas de poder e do sistema
de normas dominantes que impõem a supremacia
da ordem moral, social e econômica vigente.
Em suma, esta formação discursiva apresenta-
se como uma abordagem unilateral e restritiva,
de natureza persuasiva, que fortalece
posições radicais contra usuários e dependentes.
Atém-se, fundamentalmente, à propagação
de duas metas: por um lado, veicular explicações
e recomendações que garantam a adaptação
dos cidadãos à ordem social, concebida
como entidade ahistórica, inquestionável, imutável
e ideal; por outro, a de prover intervenções
repressoras e punitivas que excluem o
sujeito diferente, apontado como uma ameaça
às instituições e à sociedade como um todo.
A dimensão ideológica permeia o conjunto
desses textos, vinculando suas formas e idéias a
sistemas de poder presentes nas relações sociais,
necessitando de controles eficazes. Eticamente
descompromissado com o ser humano e
sua existência, constrói um quadro de moralismo
que se baseia na intolerância quanto à pluralidade
das opções e visões; por não se fundar
numa ética humanista, torna-se incapaz de caminhar
em direção a valores representativos de
liberdade e dignidade, esteios de uma convivência
democrática se não harmoniosa, pelo menos
norteada pelos ideais de justiça e respeito às
diferenças.
O modelo repressivo apregoado pelo discurso
anti-droga deve ser questionado não apenas
pela sua comprovada ineficácia em diminuir
o consumo de drogas e em contribuir significativamente
para resolver as questões de saúde
pública que levanta, mas por impor um sistema
de intervenção injusto e freqüentemente desumano.
Obcecados pela idéia de combater as
drogas ilícitas por mecanismos jurídicos e policiais
- o que significa, de fato, redução da problemática
social e sanitarista do abuso de drogas
ao combate ao narcotráfico - os adeptos deste
discurso esquecem-se da dimensão humana,
bem como da necessidade de modelos de prevenção
e tratamento que valorizem a vida e a
pessoa, dentro de um contexto abrangente de
ecologia humana.
Esquecem-se, ainda, de que não existe nenhuma
razão, nem filosófica, nem farmacológica,
nem antropológica, nem alopata, nem homeopata,
de se posicionar "contra" as drogas,
visto que essas são neutras em si e que eventuais
problemas decorrem das condições de consumo
adotadas por determinados sujeitos; esquecem-
se, afinal, que "ser do contra" raramente
representa uma contribuição construtiva, mas
sim, uma postura defensiva, em prol, por exemplo,
mais do "status quo" do que das mudanças
estruturais necessárias para que as sociedades
se tornem menos desequilibradas e injustas.
A idéia do "contra" merece uma última análise:
até que ponto o discurso anti-droga não
satisfaz a uma antiga, mas sempre viva necessidade
dos detentores de poder, aquela de precisar
de um inimigo - se não externo, então
interno à sociedade...?Afinal, a atual onda de
intolerância diante das drogas iniciou-se nos
Estados Unidos após a derrota no Vietnam,
onde os narcóticos, em particular os opiáceos,
tinham um papel não desprezível, devidamente
apontado pelos defensores da gloria militar
americana. A potencialidade "explicativa" da inculpação
das substâncias psicoativas ilícitas foi
sem dúvida realçada com o desaparecimento do
grande inimigo externo, o comunismo e seus
poderes militares.
O embate belicista deslocou-se, desde então,
de preferência para o plano do narcotráfico,
inimigo econômico poderoso, bem organizado
e bem protegido, superado pelos mercados
do petróleo e dos armamentos, mas capaz
de desestabilizar as economias de mercado ocidentais
pela instalação de poderes paralelos.
Esta nova vertente da ameaça às hegemonias
estabelecidas no ocidente suscitou colossais estratégias
de combate transferidas de outros
campos de batalha - com certeza não pelo perigo
das drogas em si, mas pelo envolvimento
macro-econômico que as caracteriza.
Eis talvez um outro sentido, e não dos mais
inocentes, da dimensão ideológica detectada no
discurso de combate às drogas. Pela sua prevalência
no setor das políticas públicas, o ser
humano mais uma vez sai perdendo, descartado
que é diante de interesses apresentados como
superiores àqueles da saúde pública, senão
como "suprahumanos". Fica a questão, inquietante,
de saber quem seria, afinal, o verdadeiro
inimigo do homem - este sim a ser investido, no
interesse da humanidade e dos direitos do homem,
como alvo de um combate mais nobre e
mais ético do que aquele dirigido, aparentemente,
às drogas e aos seus mitos.
BUCHER, R. & OLIVEIRA, S. R. M. [The discourse of the
"fight against drugs" and its ideologies]. Rev. Saúde
Pública, 28: 137-45, 1994. The ideological contents of
the literature on drug consumption and addiction with
a moralistic and enforcement approach are analysed
from a scientific and public health point of view. A
non-literal sense is brought out so that the discourse may
be understood in its original context and its links with
the forms of power present in social relations. The
theory of discourse analysis is used as the appropriate
methodology by which the ideological indicators that
impose on the texts on drugs a predetermined bias are
to be found. The results clearly reveal a persuasive
discourse that has the propose of directing and
manipulating ways of being and seeing in society,
allowing the authors to be seen as interested parties in
a heavy-handed system for the maintenance "of the
social status quo". The conclusion is that in these tests,
it is not really the drug question in itself that is dealt with,
but rather a mythical construction, used do combat
social deviation.
Keywords: Substance abuse, prevention and control.
Language. Authoritarianism.
Referências Bibliográficas
1. BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoieviski.
Rio de Janeiro, Forense - Universitária, 1981.
2. BUCIIER, R. Drogas e drogadição no Brasil. Porto
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3. CARLINI-COTRIN, B. & PINSKI, I. Prevenção ao abuso
de drogas na escola: uma revisão da literatura internacional
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4. DUCROT, O. Princípios de semântica lingüística. São
Paulo, Cultrix, 1988 (Original: 1972).
5. FIORIN, J.L. Linguagem e ideologia. São Paulo, Ática,
1990.
6. FAIRCLOUGH, N. Linguage and power. London, Lougman,
1989.
7. FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro,
Forense-Universitária, 1987. (Original: 1969).
8. FOUCAULT, M. L'ordre du discours. París, Gallimard,
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9. FOUCAULT, M. Vigiar e punir. Petrópolis, Vozes, 1988.
(Original: 1975).
10. OLIVEIRA, S.R.M. Ideologia no discurso sobre as drogas.
Brasília, 1992 [Dissertação de Mestrado - Universidade
de Braília].
11. ORNALDI, E.P. Terra à vista: discurso do confronto:
velho e novo mundo. Campinas, Cortez, 1990.
12. PECIIEUX, M. Analyse automatique du discours. Paris,
Dunod , 1969.
13. VELHO, G. Duas categorias de acusação na cultura
brasileira contemporânea. In: Figueira, S. coord.Sociedade
e doença mental. Rio de Janeiro, Campus,
1978. p. 37-45.
Recebido para publicação em 12.4.1993
Reapresentado em 24. 11993
Aprovado para publicação em 7.3.1994

Site: abordabrasil.org


terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Mídia Popular

As Frente de Juventude e Frente de Comunicação das Brigadas Populares convidam para primeira reunião do Mídia Popular!

Para dar um olé na grande Mídia!

Local: Dandara
Dia: 19/12/2010
horário: 10h

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

...

Se não fosse pela voz de Lenine[1] seria por Eduardo Galeano[2], mas se por um lado um diz com gente é diferente, o outro dos deserdados indígenas, mortos aos milhares, tornados escravos nas montanhas ou em outros lugares da América Latina. Com gente não é diferente, apesar de ser em alguns momentos quando se perde a paciência[3] . Os acontecimentos são tantos e veem de tão longe que gente mesmo vai se tornado gado, tangido, morto, marcado. Às vezes morre o filho e a mãe fica marcada, às vezes é marcado o menino, e a mãe é uma tangida.
As palavras são sempre insuficientes e mostradas talvez de maneira parabólica, mas a mãe que sozinha desce o morro e entrega o filho é porque tangida prefere ele marcado porque morto, é disso que falamos. Nós que marcamos de outra forma, a gente prefere solto, que marcado pela pena, a privativa de liberdade principalmente! E com propostas APACianas é claro! A gente prefere em cortejos que marcado pelos muros do manicômio, a gente prefere em sambas ou elaborando à sua maneira o seu delírio que cumprindo a medida de segurança. Segurança???
Impressionante é poder marcar a vida com outros olhares, porque se como gado só se olha pra frente, não é possível construir. Aí começa a esbanjar na tecnologia da informação palavras como: “não gasto um minuto da minha paciência com drogados”[4], ou manter programações inteiras que comovem com cenas violentas que podem fortalecer projetos que continuarão mantendo a juventude pobre como o alvo da força, sendo o inimigo e tendo de ser mais que tangida exterminada[5].
As pessoas tem se cansado, mesmo que aos poucos, tem perdido a paciência, mesmo que ainda não entendido por completo a mentira que se esconde atrás da reportagem: “Polícia recupera território!”, pois se esse território ali não; talvez outro. Não seríamos a sociedade do consumo se este território ou muitos outros não comercializasse o veneno do diabo, ou o produto que é um pharmacon, que traz em si a dubiedade da cura e do malefício[6]!
Os trabalhadores alcançam aos poucos o lugar que é seu por direito e porque não tem nada a perder[7]! Porque mais que fomentar as estatísticas do mal! Somos o mal! Não nos interessa uma ou outra definição porque a construção e história sempre são mais profundas que a aparência, porque no fim “gado a gente marca tange, ferra, engorda e mata. Mas com gente é diferente...”

Laila, militante da Frente de Brigadas Juventude das Brigadas Populares

1- Canto de Lenine (música de Geraldo Vandré e Theo de Barros) no Voa Viola, evento a preço popular(?) se não fossem os cambistas e a dificuldade de ultrapassar as barreiras ideológicas que são as portas do palácio das Artes
2- Sobre Veias abertas da América Latina, e os deserdados de ontem e de hoje que perdem os seus territórios, mais que os traficantes os moradores!
3- Uma canção de Lenine ou um poema de Mauro Luis Iasi, “Quando os trabalhadores perderem a paciência”
4- Fala de Agnaldo Silva sobre Fábio Assunção, mas mais que isso milhares de outros usuários não pertencentes à classe de ambos, pela Redução de Danos e não à abstinência forçada.
5- Sobre programação nos últimos meses de Globo(Malhação), Record e bandeirantes que se esforçaram em uma campanha abstrata ou não pela Redução da Maioridade Penal.
6- Sobre fala do argentino Fábio Naspartek, em Jornada do CMT: Abstinência e redução de danos.
7- Marx em o Manifesto do Partido Comunista