Sérgio Salomão Shecaira
O mais importante traço dos últimos anos na esfera penal foi a substituição do Estado de bem-estar social pelo Estado de controle, em larga escala. Escolas, creches, hospitais e outros aparatos públicos foram trocados por prisões. Em 1994 o Brasil tinha cerca de 129 mil presos (índice de 88 presos por 100 mil habitantes). No final do ano passado, chegamos aos 500 mil (261 por 100 mil habitantes). A população brasileira (147 milhões de habitantes em 1994) evoluiu cerca de 29%, segundo dados do IBGE (191 milhões em 2010), enquanto a população carcerária chegou a um incremento de 390%!
Algumas dimensões da substituição do Estado de bem-estar pelo Estado de controle devem ser destacadas. Houve uma expansão vertical por meio da hiperinflação carcerária (meio milhão no Brasil); houve uma expansão horizontal de pessoas sob controle (milhares de pessoas cumprem penas alternativas em nosso país); há um crescimento notável de dotações orçamentárias prisionais em detrimento dos gastos sociais; há uma espécie de "ação afirmativa carcerária", isto é, pobres e negros estão mais representados na população carcerária do que a elite branca; houve uma universalização desse fenômeno, pois foi uma constante em várias nações.
Grande parte desse grande encarceramento não se deveu ao aumento vertiginoso da criminalidade (que nos últimos anos chegou a decrescer em algumas esferas), mas, fundamentalmente, foi uma opção: punir mais. Legislações recentes criaram novos crimes, maximizaram penas de delitos já existentes, aumentaram as hipóteses de detenção provisórias (26% das pessoas encarceradas no Brasil aguardam julgamento), dificultaram a progressão de regime e o livramento condicional. Criou-se uma cultura punitiva. Muitos acreditam que a punição seja a solução para todos os males da humanidade.
Dois dos principais responsáveis legais por essa situação foram a Lei de Crimes Hediondos (Lei 8.072/90) e a Lei de Drogas (Lei 11.343/2006). Do cotejo dessas leis com a Constituição Federal depreende-se que o tráfico de drogas é crime equiparado a hediondo e tem alguns gravames em relação a crimes comuns. Por isso, ao contrário do que acontecia nos anos 70 do século 20, quando quase 90% dos presos tinham cometido crimes patrimoniais (furto e roubo, principalmente), 20% dos atuais presos cometeram crimes de tráfico. No caso das mulheres, o número de encarceradas por tráfico é muito maior, chegando ao dobro de homens que cometeram o mesmo crime!
Pedro Abramovay, à frente da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, constatou esse fato com muita solidez. Além de programar inúmeros seminários, conclaves e congressos para ouvir a sociedade, fez estudos científicos significativos, por meio de pesquisas de largo alcance, para aquilatar o fenômeno. Criou a série de pesquisas empíricas, distribuídas tematicamente, chamando-as de Pensando o Direito.
Coube à UnB, em parceria com a UFRJ, verificar quem, como e quando era processado por tráfico de drogas. A constatação foi a seguinte: pobres eram mais condenados do que ricos e suas penas eram mais altas; negros estavam mais representados do que brancos no cometimento de crimes de tráfico, pelo principal fato de serem negros; a discriminação social era permanente na esfera da Justiça desses Estados (algo que ocorre em todo o Brasil). Quem era pobre/negro era visto como traficante. Quem era branco de classe média era visto como usuário. A rotulação individual produzia criminosos, conforme as representações sociais assim o determinavam. Traficantes não eram traficantes, mas aqueles que pareciam traficantes.
O STF também identificou essa questão, a seu modo. Passou a assegurar a possibilidade àquele que cometeu crime previsto no artigo 33 da Lei 11.343/2006 de obter penas restritivas de direitos, quando criminoso primário, sem antecedentes e sem envolvimento com organizações criminosas. Enfim, na hipótese do parágrafo 4º do artigo 33, em que a pena genericamente prevista pode ser diminuída em até 2/3, reconheceu-se a figura do "pequeno" traficante. Aquele que eventualmente pratica quaisquer das condutas descritas como tráfico não pode ter a mesma reprovabilidade daquele que comete um crime envolvido com organizações criminosas, fazendo disso seu sustento permanente.
O pecado de Pedro Abramovay foi defender que aquilo que já se sabe fosse transformado
Não se combate a criminalidade com injustiças, mas sim com a Justiça. Um país que tem o ministério com tal nome tem que explicar o porquê da saída desse brilhante técnico e intelectual de seus quadros.
Sérgio Salomão Shecaira é professor titular da USP e ex-presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, do Ministério da Justiça
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