quinta-feira, 23 de junho de 2011

A Guerra do Rio – A farsa e a geopolítica do crime

Importante texto do professor José Claudio S. Alves, sociólogo da UFRRJ para entender os acontecimentos no Rio de Janeiro.



Nós que sabemos que o “inimigo é outro”, na expressão padilhesca, não podemos acreditar na farsa que a mídia e a estrutura de poder dominante no Rio querem nos empurrar.

Achar que as várias operações criminosas que vem se abatendo sobre a Região Metropolitana nos últimos dias, fazem parte de uma guerra entre o bem, representado pelas forças publicas de segurança, e o mal, personificado pelos traficantes, é ignorar que nem mesmo a ficção do Tropa de Elite 2 consegue sustentar tal versão.

O processo de reconfiguração da geopolítica do crime no Rio de Janeiro vem ocorrendo nos últimos 5 anos.

De um lado Milícias, aliadas a uma das facções criminosas, do outro a facção criminosa que agora reage à perda da hegemonia.

Exemplifico. Em Vigário Geral a polícia sempre atuou matando membros de uma facção criminosa e, assim, favorecendo a invasão da facção rival de Parada de Lucas. Há 4 anos, o mesmo processo se deu. Unificadas, as duas favelas se pacificaram pela ausência de disputas. Posteriormente, o líder da facção hegemônica foi assassinado pela Milícia. Hoje, a Milícia aluga as duas favelas para a facção criminosa hegemônica.

Processos semelhantes a estes foram ocorrendo em várias favelas. Sabemos que as milícias não interromperam o tráfico de drogas, apenas o incluíram na listas dos seus negócios juntamente com gato net, transporte clandestino, distribuição de terras, venda de bujões de gás, venda de voto e venda de “segurança”.

Sabemos igualmente que as UPPs não terminaram com o tráfico e sim com os conflitos. O tráfico passa a ser operado por outros grupos: milicianos, facção hegemônica ou mesmo a facção que agora tenta impedir sua derrocada, dependendo dos acordos.

Estes acordos passam por miríades de variáveis: grupos políticos hegemônica na comunidade, acordos com associações de moradores, voto, montante de dinheiro destinado ao aparado que ocupa militarmente, etc.

Assim, ao invés de imitarmos a população estadunidense que deu apoio às tropas que invadiram o Iraque contra o inimigo Sadam Husein, e depois, viu a farsa da inexistência de nenhum dos motivos que levaram Bush a fazer tal atrocidade, devemos nos perguntar: qual é a verdadeira guerra que está ocorrendo?

Ela é simplesmente uma guerra pela hegemonia no cenário geopolítico do crime na Região Metropolitana do Rio de Janeiro.

As ações ocorrem no eixo ferroviário Central do Brasil e Leopoldina, expressão da compressão de uma das facções criminosas para fora da Zona Sul, que vem sendo saneada, ao menos na imagem, para as Olimpíadas.

Justificar massacres, como o de 2007, nas vésperas dos Jogos Pan Americanos, no complexo do Alemão, no qual ficou comprovada, pelo laudo da equipe da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, a existência de várias execuções sumárias é apenas uma cortina de fumaça que nos faz sustentar uma guerra ao terror em nome de um terror maior ainda, porque oculto e hegemônico.

Ônibus e carros queimados, com pouquíssimas vítimas, são expressões simbólicas do desagrado da facção que perde sua hegemonia buscando um novo acordo, que permita sua sobrevivência, afinal, eles não querem destruir a relação com o mercado que o sustenta.

A farça da operação de guerra e seus inevitáveis mortos, muitos dos quais sem qualquer envolvimento com os blocos que disputam a hegemonia do crime no tabuleiro geopolítico do Grande Rio, serve apenas para nos fazer acreditar que ausência de conflitos é igual à paz e ausência de crime, sem perceber que a hegemonização do crime pela aliança de grupos criminosos, muitos diretamente envolvidos com o aparato policial, como a CPI das Milícias provou, perpetua nossa eterna desgraça: a de acreditar que o mal são os outros.

Deixamos de fazer assim as velhas e relevantes perguntas: qual é a atual política de segurança do Rio de Janeiro que convive com milicianos, facções criminosas hegemônicas e área pacificadas que permanecem operando o crime? Quem são os nomes por trás de toda esta cortina de fumaça, que faturam alto com bilhões gerados pelo tráfico, roubo, outras formas de crime, controles milicianos de áreas, venda de votos e pacificações para as Olimpíadas? Quem está por trás da produção midiática, suportando as tropas da execução sumária de pobres em favelas distantes da Zona Sul? Até quando seremos tratados como estadunidenses suportando a tropa do bem na farsa de uma guerra, na qual já estamos há tanto tempo, que nos faz esquecer que ela tem outra finalidade e não a hegemonia no controle do mercado do crime no Rio de Janeiro?

Mas não se preocupem, quando restar o Iraque arrasado sempre surgirá o mercado finaneiro, as empreiteiras e os grupos imobiliários a vender condomínios seguros nos Portos Maravilha da cidade.

Sempre sobrará a massa arrebanhada pela lógica da guerra ao terror, reduzida a baixos níveis de escolaridade e de renda que, somadas à classe média em desespero, elegerão seus algozes e o aplaudirão no desfile de 7 de setembro, quando o caveirão e o Bope passarem.


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sexta-feira, 17 de junho de 2011

Pior Salário Do Brasil

Acaso eu não fosse professora e não soubesse o tanto de criatividade se necessita para estar diante de um grupo de crianças ou adolescentes em pleno 2011, não veria profundidade da frase, ou o sarcasmo contido num estandarte , na passeata desta última quinta feira, desde a Assembléia Legislativa até o centro da capital mineira.
Pior Salário Do Brasil, as iniciais lembram alguma coisa, e com certeza, não são solidárias a uma como Perda Total ou outros articuladores. Entre sorrisos de lembranças das últimas passeatas, o contato com aqueles meus companheiros de trabalho, mesmo não sendo eu ainda uma professora, estava lá. Sendo por (de)formação mas ainda faltando a verdade da materialização do trabalho!
Um exemplo interessante de como se faz. Regime de votação, mãos levantadas! Sim! GREVE! GREVE! GREVE! Porque não dá mais, simplesmente impossível permanecer nas salas de aula. Diante da violência do salário de miséria, diante da violência do cotidiano, e da dura realidade que absorve aquele que no seu cotidiano vê além do que os familiares podem ver. Não é virar as costas para os estudantes, é por eles também que eles e elas permanecem parados e ocupados!
A expressão da vontade de um coletivo, tão importante para a criação de outra forma de sociabilidade pode dar à sociedade a possibilidade de perceber o que se esconde por dentro dos muros, que escondem muito do que é preciso ver. É preciso adentrar a escola para perceber o mundo que vira aquele samba, os percalços de um trabalho não valorizado. A dúvida para lidar com o que não se aprendeu. Temas e posições, o que sabe ou deve saber um professor no ano de 2011? Como ele acessou o mundo dessa juventude que se apresenta; dura pela indiferença, bela no sentido da autonomia mesmo romantizada.
Dizer sim! Levantar o braço pela continuidade do direito de parar. E parar pra fazer cumprir a lei! Há algo mais absurdo? Greve pra que se cumpra lei de um piso salarial? Mas se é necessário que seja feito! Pois afinal não podemos fazer o que queremos, devemos fazer o que deve ser feito: levantar braços, vozes e estandartes! Pois só o ajuntamento é possibilidade de transformação.

Por acesso ao direito de se manifestar!
Por uma cidade onde caibam todos e todas!


Laila, militante da frente de juventude das Brigadas Populares





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quarta-feira, 1 de junho de 2011

“O racismo fica escancarado ao olhar mais superficial”, entrevista Abdias Nascimento




Entrevistas
Ao longo de seus 96 anos, Abdias esteve presente e participou de inúmeras passagens importantes das lutas negras do século 20, não só no Brasil, mas também nos Estados Unidos e na África. Sua vida é ela mesma a própria história da luta negra
18/11/2010
Joana Moncau e
Spensy Pimentel
de São Paulo (SP)
Desinformémonos.org

A luta pelo reconhecimento dos direitos, a dignidade e a autonomia da população negra tem heróis de muitos países, entre África e Américas. É uma luta tão antiga quanto a diáspora negra produzida pelo vergonhoso comércio de africanos que vigorou no Atlântico por quase quatro séculos. É por se tratar de uma luta de tantos povos, lugares, tempos e pessoas que impressiona tanto conhecer a vida do ativista brasileiro Abdias do Nascimento.

Ao longo de seus 96 anos, Abdias esteve presente em e participou de inúmeras passagens importantes das lutas negras do século 20, não só no Brasil, mas também nos Estados Unidos e na África. Nasceu em 1914, numa época em que ainda eram extremamente recentes as lembranças da escravidão no país, abolida em 1888. Nos anos 1930, engajou-se numa iniciativa pioneira, a Frente Negra Brasileira, na luta contra a segregação racial nos estabelecimentos comerciais de São Paulo. Por sua militância política, foi preso pela ditadura Vargas.
Nos anos de 1940, viajou pela América Latina como artista – é escritor, ator e artista plástico – com a Santa Hermandad Orquídea, e fundou o Teatro Experimental do Negro, entidade que organizou a Convenção Nacional do Negro em 1945-46. A iniciativa foi responsável pela formulação de diversas sugestões de políticas públicas para a população negra durante a Constituinte de 1946. Abdias ainda organizou o 1° Congresso do Negro Brasileiro em 1950.
Militante do Partido Trabalhista Brasileiro, foi perseguido pela ditadura militar, instalada pelo golpe de 1964. Exilado nos Estados Unidos, travou contato com o movimento negro no país, no auge da efervescência do Black Power. Nos anos 1970, participou do movimento pan-africanista e foi professor universitário na Nigéria. Nesse período, atuou em países como Jamaica, Tanzânia, Colômbia e Panamá, mantendo contato com lideranças como Aimé Césaire, Frantz Fanon, Léon Damas, Richard Wright, Cheikh Anta Diop, Léopold Sédar Senghor e Alioune Diop.

Ajudou a organizar o Movimento Negro Unifi cado (MNU), fundado em 1978, e, na redemocratização dos anos 1980, voltou ao país, foi eleito deputado federal e, depois, chegou a senador pelo PDT, sempre defendendo projetos em benefício da população negra. Junto com a esposa, Elisa Larkin Nascimento, fundou o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro), atualmente presidido por ela.

Na entrevista a seguir, respondida por e-mail por sua esposa, Elisa, e subscrita por ele, Abdias dá um recado à nova geração de jovens negros militantes: “O conselho que dou para essa juventude é estudar, aprender, conhecer e se preparar para, então, se engajar: agir, criar, interagir e participar da construção das coisas.”
Qual a importância de se criar o Dia Nacional da Consciência Negra? Por que o senhor lutou para que a data fosse instituída no dia 20 de novembro, dia da morte do líder Zumbi dosPalmares, e não no dia 13 de maio,

dia da promulgação da Lei Áurea, data antes escolhida pelo governo?

Abdias do Nascimento – A demanda de se instituir o Dia Nacional da Consciência Negra no dia 20 de novembro surgiu na década dos 1970 a partir do Rio Grande do Sul, onde o saudoso poeta Oliveira Silveira militava no Grupo Negro Palmares. O movimento negro como um todo, organizado em entidades em vários estados do Brasil naquela época, a encampou. Eu já costumava dizer que a Lei Áurea não passava de uma mentira cívica. Sua comemoração todo ano fazia parte do coro de autoelogio que a elite escravocrata fazia em louvor a si mesma no intuito de convencer a si mesma e à população negra desse esbulho conhecido como “democracia racial”. Por isso o movimento negro caracterizou o dia 13 de maio como dia de reflexão sobre a realidade do racismo no Brasil.
O dia 20 de novembro simboliza a resistência dos africanos contra a escravatura. Essa resistência assume diversas expressões táticas e perpassa todo o período colonial. Durante esse período, em todo o território nacional, havia quilombos e outras formas de resistência que, em seu conjunto, desestabilizaram a economia mercantil e levara

m à abolição da escravatura. Esse é o verdadeiro sentido da luta abolicionista, cujos protagonistas eram os próprios negros. Eles se aliavam a outras forças, mas, muitas vezes, foram traídos por seus aliados. Mais tarde, entretanto, a visão eurocêntrica da história ergueria os aliados como supostos atores e heróis da abolição. A comemoração do Dia Nacional da Consciência Negra em 20 de novembro tem como objetivo corrigir esse registro histórico e reafirmar a necessidade de continuarmos, nós, os negros, protagonizando a luta contra o racismo que ainda impera neste país.

O Memorial Zumbi, movimento nacional que agregava entidades do movimento negro de todo o país em torno da demanda da recuperação das terras da República dos Palmares, ergueu essa bandeira na década dos 1980. Tive a honra de participar desse movimento. O Memorial Zumbi instituiu a tradição de se realizarem peregrinações cívicas anuais às terras de Palmares na serra da Barriga, estado de Alagoas. Conseguimos, em 1989, a desapropriação dessas terras. O objetivo era instalar ali um polo de cultura de libertação do n

egro. Hoje, existe um monumento e assistimos a cerimônias cívicas no dia 20 de novembro em que participam altas autoridades do governo federal e estadual. Mas para nós, negros, o monumento lembra a necessidade de continuarmos lutando pelo fim da discriminação racial.

O senhor esteve no exílio, de 1968 a 1981, por conta da enorme repercussão que teve a sua “carta-declaraçãomanifesto” na qual denunciava a farsa do paraíso racial que se dizia viver na América Latina. Como o senhor avalia a questão da “democracia racial” no Brasil de hoje? Onde é possível dizer que a crítica a ela colheu frutos?
O racismo no Brasil se caracteriza pela covardia. Ele não se assume e, por isso, não tem culpa nem autocrítica. Costumam descrevê-lo como sutil, mas isto é um equívoco. Ele não é nada sutil, pelo contrário, para quem não quer se iludir ele fica escancarado ao olhar mais casual e superficial. O olhar aprofundado só confirma a primeira impressão: os negros estão mesmo nos patamares inferiores, ocupam a base da pirâmide social e lá sofrem discriminação e rebaixamento de sua autoestima em razão da cor. No topo da riquez

a, eles são rechaçados com uma violência que faz doer. Quando não discrimina o negro, a elite dominante o festeja com um paternalismo hipócrita ao passo que apropria e ganha lucros sobre suas criações culturais sem respeitar ou remunerar com dignidade a sua produção. Os estudos aprofundados dos órgãos ofi ciais e acadêmicos de pesquisa demonstram desigualdades raciais persistentes que acompanham o desenvolvimento econômico ao longo do século 20 e início do 21 com uma fi delidade incrível: à medida que cresce a renda, a educação, o acesso aos bens de consumo, enfim, à medida que aumentam os benefícios econômicos da sociedade em desenvolvimento, a desigualdade racial continua firme.

Pensando o caso de Cuba, em específi co, como o senhor considera o fato de que um governo dito socialista, num país de população negra tão expressiva, aparentemente não mostra avanços na participação política dos negros?
A ideologia racial cubana é irmã gêmea da “democracia racial” brasileira. O ideal da “Cor Cubana” acompanha a constant

e referência ilusória à suposta cordialidade latina. A história recente envolve os ideais da revolução, o engajamento militar na África durante as guerras de libertação nacional e a atuação internacional de médicos em países como o Haiti. A dinâmica entre o sonho e a realidade do socialismo dá um tom distinto ao questionamento do sistema no que diz respeito à questão racial. Entretanto, não há como negar certos fatos:

(a) Os negros não estão presentes no poder político do regime cubano em número proporcional à sua participação na população.
(b) As desigualdades raciais perduraram ao longo do processo de mudança social implantado após 1959 e continuam sendo constatadas em pesquisas recentes.
(c) Há uma crescente discussão da questão racial em Cuba conduzindo ao reconhecimento de que a revolução não resolveu essa questão.
(d) Hoje, a demanda por uma abertura democrática do regime não é o discurso só de uma minoria elitista, branca, incrustada em Miami e aliada aos interesses do bloqueio. Há uma oposição de origem humilde, composta em

parte por negros e mestiços que apontam processos de exclusão e de desigualdades raciais. Não podemos mais rechaçar essa oposição como um bando de criminosos cuja traição se basearia em mentiras fabricadas pela direita fascistoide.

Durante o período em que o senhor esteve exilado, pôde estabelecer o contato entre o movimento social negro norte-americano e o da América Latina, até então, quase desconhecido daquele. Esteve com movimentos inspiradores, como os Panteras Negras. Atualmente, muitos desses lutadores ainda pagam o preço da sua resistência, vários estão presos desde os anos 1970, condenados à pena de morte ou à prisão perpétua nos EUA. Como pode ser possível que se fale tão pouco desses presos políticos?
Como sabemos, a mídia é dominada pelo poder econômico e não lhe interessa divulgar esses casos. Mas não é só o poder econômico, também a ideologia pode contribuir para isso. Não é fato novo para

mim. Na década de 1940, quando o Brasil passava por um processo de redemocratização depois do regime do Estado Novo de Getúlio Vargas, eu ajudei a fundar o Comitê Democrático Afro-Brasileiro.

Aguinaldo Camargo e Sebastião Rodrigues Alves participaram, além de outras lideranças, e nós nos reuníamos na sede da União Nacional de Estudantes, a UNE, uma organização de esquerda. O Comitê era aberto e defi niu como prioridade imediata a luta pela libertação dos presos políticos do regime. Entretanto, quando essa libertação foi conquistada e nós negros queríamos tratar das questões específi cas relacionadas à discriminação racial, nossos companheiros brancos de esquerda não aceitaram. Taxaram-nos de racistas e exigiram que fizéssemos autocrítica. Não entramos nessa conversa, evidentemente. O Comitê morreu de morte matada. Depois, na época em que eu voltava do exílio no final dos anos de 1970, havia um movimento pela anistia ampla e irrestrita. Mas a liderança esquerdista desse movimento não reconhecia a prisão dos negros por discriminação racial como uma forma de perseguição política. Morriam trabalhadores negros nas prisões, como continua acontecendo hoje. Nós negros consideramos isso uma

questão política. Mas, para as forças de esquerda, presos políticos seriam apenas os fi lhos de classe média e alta, quase todos brancos, que roubavam bancos, jogavam bombas ou sequestravam embaixadores. Esses, em muitos casos, efetivamente haviam cometido atos de violência, enquanto não raro negros são presos e torturados sem terem cometido crime algum.

Qual a importância que o senhor credita ao hip hop, no Brasil, para o movimento negro e para a população negra em geral? É um movimento herdeiro das lutas que pioneiros como o senhor travaram?
Considero o hip hop um movimento muito importante, sobretudo no aspecto da autoestima, pois as letras de muitas músicas e a atuação social de muitos de seus integrantes ajudam os jovens negros e as jovens negras a elevar o conceito que têm de si mesmos e de sua comunidade. Certamente, o hip hop cuida de muitas questões que são as versões atualizadas dos problemas que o movimento negro tem enfrentado desde sempre, e o hip hop oferece para a juventude uma referência, uma esperança e uma visão diferen

te daquela que a sociedade dominante e os meios de comunicação cultivam e que a juventude reconhece como mentirosa e interesseira. Entretanto, creio que seus protagonistas tenham pouco acesso aos referenciais históricos das lutas anteriores, e, nesse sentido, sua condição de herdeiros seja um pouco simbólica. Por exemplo, me parece que eles conhecem mais a história do movimento negro nos Estados Unidos, o discurso de Malcolm X e Martin Luther King, e os referenciais do reggae da Jamaica do que os fatos e os discursos do movimento negro no Brasil dos séculos 20 e 21. Pode ser que eu esteja equivocado, espero que sim!

Depois de séculos de lutas, hoje vemos uma juventude negra que está conseguindo chegar às universidades, ter mais oportunidades econômicas, formando uma elite intelectual negra. Como o senhor compararia a atual situação da juventude negra com a da época do senhor, com a da Frente Negra? Quais os conselhos que daria a essa juventude?
As entidades negras atualmente promovem muitas iniciativas análogas às da Frente Negra. O Estatuto de Igualdade Racial e todos os outros dispositivos legais, programas governamentais e instituições ou órgãos de governo dedicados às políticas públicas de igualdade racial, por exemplo, são conquistas concretas, frutos da atuação política do movimento negro. Nenhum deles foi uma bênção ou dádiva dos governantes ou políticos, muito ao contrário. Se há uma crítica ao Estatuto, é porque, em razão da

ferrenha oposição contra ele nos setores conservadores que dominam a política brasileira, o processo de negociação de sua aprovação no Senado impôs uma série de aparentes retrocessos na letra da lei em relação a programas de governo já implantados como resultado da atuação do movimento negro. Mas foi o movimento negro que conseguiu implantar esses programas, então ele está longe de se limitar a atacar o governo. Foi ele que inseriu na Constituição de 1988, por exemplo, o direito das comunidades quilombos à titulação de suas terras. O conselho que dou para essa juventude é estudar, aprender, conhecer e se preparar para, então, se engajar: agir, criar, interagir e participar da construção das coisas. Cada um tem seu talento e sua área de interesse. O importante é se colocar a serviço do avanço e dedicar-lhe as suas energias.


Muito se fala do movimento negro no âmbito urbano, mas o Brasil assistiu, nos últimos anos, ao crescimento do movimento negro rural, particularmente o movimento quilombola, para o qual também o senhor teve especial importância na garantia do direito fundiário das comunidades quilombos. Qual a importância da questão da terra para o movimento negro, hoje?

Como fruto da mobilização política do movimento negro, a Constituição de 1988 estabeleceu o direito à titulação das terras das comunidades chamadas “remanescentes de quilombos”. Em 1989, como fruto do trabalho do Memorial Zumbi e do movimento negro como um todo, criou-se a Fundação Cultural Palmares, que seria responsável pelo processo de titulação. Entretanto, a Fundação é um órgão do Ministério da Cultura que não dispõe dos recursos humanos ou fi nanceiros para executar o trabalho de titulação. Essa tarefa passou, então, para o Ministério da Reforma Agrária. Entretanto, a Fundação Palmares dá parecer sobre a questão fundamental da condição quilombola, que determina o direito à titulação. O grande argumento para negar o direito de uma comunidade é alegar que ela não tem ou não provou que tem antecedentes históricos que a qualifi quem como remanescente de quilombo. O processo tem sido muito lento. Alguns anos atrás, a Fundação Palmares publicou um levantamento em que identificou a existência de mais de três mil comunidades quilombos em todo o país, ressalvando que certamente não conseguiu realizar um levantamento exaustivo ou defi nitivo. A questão da titulação esbarra, evidentemente, em poderosos interesses contrariados que, no contexto rural, ainda exercem a violência como forma de se impor.
Vale observar, também, que é negra a grande maioria dos sem-terras hoje organizados e conduzindo uma luta que tem sido defi nida como um dos mais importantes fenômenos sociais e políticos do século 21. A importância da terra está fundamentalmente ligada ao fato de que as cidades estão inchadas, inviabilizadas, e não dão conta de oferecer condições de vida dignas à população que já as habita, tendo grande parte dela migrado do interior. A economia rural baseada na agroindústria não tem condições de sustentar a população rural, porque não oferece trabalho em condições dignas. A produção agrícola baseada em unidades pequenas, familiares ou comunitárias, é a única solução para o campo e ela precisa, hoje, de subsídios e políticas de Estado para se viabilizar. As comunidades quilombos fazem parte integral dessa solução e precisam de subsídios específicos e de políticas específi cas para o seu desenvolvimento como unidades comunitárias rurais.
Na América Latina em geral, a questão étnica tem ganhado uma importância fundamental nas lutas políticas dos povos, em países como Bolívia, Equador, México – com diferentes tons, mas sempre realçando o fator étnico sobre o fator classe. No Brasil, o fator étnico de maior potencial é justamente o negro. Qual o papel que o fator étnico ocupa na luta política nacional? Será que ele poderá ocupar papel de semelhante preponderância na luta política?
Não recorro ao eufemismo “questão étnica” porque creio que seu uso reforça o equívoco da suposta acepção biológica do termo “raça”. Esta é uma pista falsa cuja manipulação abastece de grande e valiosa munição aqueles que procuram desmoralizar e deslegitimar a nossa luta. A categoria social de “raça” é uma realidade socialmente construída que independe das justifi cações genéticas e biológicas. Estas constituem apenas um pequeno episódio no milenar processo histórico de construção das categorias sociais de “raça”, da subordinação e desumanização ideológica de grupos raciais e da discriminação racial institucionalizada em sociedades capitalistas plurirraciais modernas e contemporâneas. Os grupos discriminados nessas sociedades não correspondem a nenhuma etnia, portanto, é conceitualmente confuso e cientificamente incorreto falar de “discriminação étnica” quando o alvo desse tratamento vem a ser a população negra ou indígena, por exemplo. Um negro no Brasil, na Venezuela ou na Costa Rica não é identifi cado como ibo, acã, zulu, hutu ou ioruba, mas como negro ou afrodescendente. Os indígenas nas Américas não são discriminados na sua condição de maias, incas, quéchuas, aimaras, cheyenne, iroquois, sioux, tupis ou guaranis, mas como indígenas.
Adotar o eufemismo “questão étnica” significa, a meu ver, uma tática defensiva que instaura a confusão conceitual entre nós e entrega os pontos aos adversários que alegam que nós, ao defendermos os nossos direitos, estamos sendo racistas. Ao aceitar a defi nição deles, identificando a categoria social de raça com o critério genético biológico, nós nos submetemos ao discurso hegemônico que desmoraliza nossa própria

luta e deslegitima nossa própria experiência histórica de opressão e discriminação. Dito isso, creio que fica evidente que considero o “fator racial” como uma questão eminentemente política e não a separo de uma suposta “outra” luta política “maior”. Considero a luta por justiça social e pela dignidade dos povos como parte integral da luta por nações mais justas e seguras, por uma comunidade internacional mais justa e coesa, e por um futuro de vida humana capaz de sustentar com dignidade nossa população, nossos ambientes e nosso planeta. (Publicado emDesinformémonos. Colaboraram Rafael Gomes e Gabriela Moncau)

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